A História do Kanban

O Kanban percorreu um longo caminho para se tornar uma parte essencial da metodologia de gerenciamento Lean que é hoje. Vale a pena conferir a rica história do Kanban, que iniciou durante o período Edo no Japão.

Década de 1600: As raízes do Kanban

Placa japonesa de Kanban

Em 1603, após o fim dos devastadores conflitos militares e da agitação social quase constantes do século 14, o Japão entrou em um período de estabilidade e crescimento econômico. Com o crescimento da economia do país, as ruas das cidades japonesas ficaram lotadas de lojas e empresas locais disputando o reconhecimento e a atenção dos clientes. Foram nessas ruas que o termo “Kanban” nasceu.

Por que se chama Kanban?

O nome Kanban vem de duas palavras japonesas, “Kan” (看) significando placa, e “Ban” (板) significando quadro. Na medida que as ruas ficavam mais cheias, os lojistas começaram a fazer placas personalizadas - “KanBans” - para chamar a atenção dos transeuntes e informá-los sobre o tipo de serviço prestado por cada loja. Não demorou muito para os designers de placas Kanban começaram a competir entre si, criando artisticamente suas placas de sinalização, me modo a se destacarem dos outros Kanbans da rua - uma prática que persiste até hoje com os designs de neon modernos. Observando a rica coleção daquela época, você veria um Kanban de pescador parecido com um peixe ou um Kanban de cachimbo de madeira artisticamente estilizado, confeccionado para uma loja de cachimbos.

Todas essas placas Kanban tinham uma coisa em comum – assim como os cartões Kanban modernos, foram capazes de comunicar seu conteúdo de forma clara e concisa.

Década de 1940: Lean manufacturing Kanban da Toyota

Produzir apenas o que é necessário, quando for necessário e na quantidade necessária. Taiichi Ōno

“Tudo continua indo bem: Toyota” era um dos lemas da Toyota anos atrás, e que pegou. Mas nem sempre foi assim.

Na década de quarenta, a Toyota estava longe de ser gigante da indústria que conhecemos hoje. Após a Segunda Guerra Mundial, a indústria automobilística japonesa estava estagnada. A Toyota estava tendo um grande prejuízo, não conseguia competir com nenhuma das montadoras americanas e estava em uma situação tão ruim que não conseguia contratar novos funcionários. Mas o CEO da Toyota, Kiichiro Toyoda, tinha como missão mudar essa situação. Percebendo que a diferença de dez vezes na produtividade entre os fabricantes de automóveis dos EUA e a Toyota não poderia ser explicada apenas pela falta de equipamentos - o problema era mais complexo, ele definiu como meta da empresa igualar a produtividade com os fabricantes automotivos americanos em três anos. Mesmo que um objetivo tão ambicioso quanto esse dificilmente pudesse ser alcançado, ele colocou a empresa em um rumo baseado na inovação e otimização da organização do trabalho para os próximos anos.

Essa mudança na cultura da empresa abriu caminho para Taiichi Ōno, um jovem engenheiro industrial que acabara de ser transferido para a Toyota Motor Company em 1943.

Ohno-Taiichi Taiichi Ōno, fonte: wikimedia.org

Taiichi Ōno tinha um caráter rígido, mas justo, e rapidamente ascendeu na hierarquia da Toyota. Em 1949 ele se tornou o gerente da oficina mecânica, o que lhe permitiu começar a experimentar novas ferramentas e princípios de organização do trabalho. Em 1954, ele foi promovido a um cargo de diretor.

Ōno identificou e categorizou sete tipos de desperdício (muda em japonês), que levavam a uma diminuição da produção e do desempenho de um sistema.

Os sete tipos de desperdício Os sete tipos de desperdício (muda)

A produção excessiva era um desperdício (pois as demandas dos clientes podem mudar com o tempo), assim como manter um grande estoque de matérias-primas. A única solução para este aparente paradoxo era produzir o necessário e apenas quando necessário. Era preciso manter os estoques ao mínimo e, ao mesmo tempo, assegurar um fluxo de trabalho regular e intenso em todo o processo. Porém esta abordagem tinha lá os seus problemas. Como sinalizar que um novo produto é necessário? Como propagar este sinal de volta à linha de produção e, eventualmente, aos fornecedores de matérias-primas?

Supermercados varejistas vieram com ajuda. Ōno visitou os Estados Unidos em 1956 e ficou impressionado com a forma como as redes de supermercados Piggly Wiggly conseguiam manter as prateleiras abastecidas apenas com a quantidade certa de cada produto. Depois de voltar ao Japão, passou a usar cartões de papel para sinalizar e rastrear a demanda em sua fábrica, batizando o novo sistema de “Kanban”.

Os cartões Kanban eram anexados a cada produto acabado e, após o mesmo ser vendido, os cartões voltavam para a linha de produção. Os colaboradores poderiam trabalhar em um novo item somente quando o cartão sinalizando uma demanda voltava para eles e apenas quando o número de cartões Kanban pendentes atingia um limite definido. Cada material usado durante a produção também tinha seu próprio cartão Kanban anexado, de forma que o sinal de demanda fluía por toda a cadeia de produção, terminando em fornecedores externos.

Kanban principles Manufatura Kanban, fonte: wikimedia.org

Tal sistema reduziu os estoques, melhorou o rendimento e proporcionou alta visibilidade do processo. Seu uso se disseminou rapidamente por toda a Divisão de Usinagem. Em 1963, um plano foi desenvolvido para propagá-lo ainda mais para toda a empresa e, em pouco tempo, foi adotado em quase todos os processos da Toyota.

O poder da aplicação do Kanban foi tal que a Toyota deixou de operar com prejuízo e se tornou o concorrente global que é hoje. Taiichi Ōno passou por todos os cargos seniores da empresa e se tornou vice-presidente executivo em 1975. Seu trabalho deu origem não apenas ao novo significado de “Kanban”, mas também lançou as bases para modernas técnicas de gestão, conhecidas como Sistema Toyota de Produção.

2003-2008: Kanban para a indústria de software

Na medida que o Sistema Toyota de Produção ganhava popularidade e as notícias sobre o mesmo se espalhavam, gerentes de projeto de diferentes tipos de indústria tentavam aplicar seus ensinamentos básicos ao seu trabalho.

O avanço mais significativo veio da Indústria de Software.

Por volta dessa época, o gerenciamento de projetos em Software já estava gradualmente mudando de processos pesados e ineficientes como o CMMI para uma abordagem mais leve e “ágil”, que foi formalizada sob o Manifesto Ágil, publicado em 2001.

Manifesto for Agile Software Development Manifesto para Desenvolvimento Ágil de Software, fonte: agilemanifesto.org

O Manifesto Ágil e seus princípios básicos forneceu orientações gerais como “acolher mudanças nos requisitos” ou “entregar software funcional com frequência”, mas não especificou como isso deve ser realizado. Consequentemente, vários sistemas de gerenciamento de trabalho evoluíram rapidamente para preencher essa lacuna, adotando o Manifesto e se tornando o núcleo do desenvolvimento de software Ágil daquela época. Os mais notáveis deles foram Scrum, Programação Extrema e, pouco depois, Desenvolvimento Lean de Software.

Elementos de Scrum, Desenvolvimento Lean de Software e Gerenciamento Ágil tiveram um impacto significativo no que estava prestes a se tornar o método Kanban.

  • Scrum
    Muitas equipes Scrum usaram quadros de avisos com cartões de história de usuário como radiadores de informação. Funcionava mais ou menos assim: durante o planejamento do sprint, cada história de usuário (ou funcionalidade a ser implementada), era escrita em um cartão físico separado. Juntos, esses cartões formavam o backlog do sprint e eram colocados em um grande quadro em algum lugar do escritório, acessível a todos os membros da equipe. Cada membro da equipe podia ir até o quadro, dar uma olhada nas histórias e escolher uma que gostaria de implementar em seguida. Ele então levava o cartão para sua mesa e, uma vez que o trabalho estivesse concluído, o cartão era riscado e devolvido ao quadro. Esse sistema simples era engenhoso. Ele fornecia alta visibilidade do progresso, permitia a sincronização do trabalho entre vários programadores e melhorava o fluxo de trabalho, uma vez que cada programador podia escolher o tipo de trabalho que achasse mais capacitado a fazer.

  • Desenvolvimento Lean de Software
    Em 2003, Mary e Tom Poppendieck publicaram o livro “Lean Software Development: An Agile Toolkit”, hoje clássico sobre desenvolvimento de software. O livro traduziu os princípios de manufatura Lean do Sistema Toyota de Produção para o desenvolvimento de software e o domínio do trabalho com conhecimento. O título se concentrou em eliminação de desperdícios, mapeamento do fluxo de valor e sistemas puxados. Foi seguido, em 2007, por outro livro dos mesmos autores, “Implementing Lean Software Development: From Concept to Cash”, que explorou ainda mais o uso da teoria das filas para reduzir os tempos de entrega de software e quadros Kanban como um elemento do Espaço de Trabalho Visual. Além disso, em 2005, Jim Sutton e Peter Middleton publicaram “Lean Software Strategies” que identificou os cinco princípios da manufatura Lean - definição de valor, mapeamento do fluxo de valor, implementação de fluxo, manutenção de um processo puxado (pull), busca de oportunidades de melhoria - e os aplicou ao desenvolvimento de software.

  • Gerenciamento Ágil
    Além do Scrum e do Desenvolvimento Lean de Software, outros conceitos de como as equipes poderiam se tornar mais ágeis também foram explorados. Em 2004, David Anderson publicou o livro “Agile Management for Software Engineering: Applying the Theory of Constraints for Business Results”, que cobria conceitos como fluxo, gargalos, controle visual e diagrama de fluxo cumulativo, todos posteriormente incorporados ao método Kanban.

Naquela época, algumas equipes de desenvolvimento de software, que já utilizavam quadros Scrum, abraçaram essas novas técnicas e reorganizaram seus quadros com a introdução de colunas que representavam as distintas etapas do trabalho, dando origem aos quadros Kanban.

Os quadros Kanban, combinados com outros métodos de desenvolvimento Lean de software e gerenciamento ágil, como Agendamento Puxado, Limitação do Trabalho à Capacidade e Medição de Fluxo, deram origem ao desenvolvimento de software no estilo Kanban.

Este Kanban inicial ganhou aceitação como um sistema próprio, pois ajudou naquilo que o Scrum não era particularmente bom, como encurtar o tempo de ciclo da solicitação do cliente à entrega e garantir um fluxo constante de trabalho.

Na metodologia Scrum clássica, após uma sessão de planejamento de sprint, o backlog do sprint fica congelado – nenhuma mudança pode ser feita. Geralmente, esse estado dura de 7 a 30 dias, conforme a equipe avança com o backlog e, às vezes, pode ser frustrante tanto para os desenvolvedores, quanto para os clientes finais. O que fazer se houver uma emergência e um recurso específico precisar ser implementado rapidamente? O que fazer com todos os bugs descobertos no produto final – os clientes finais precisam esperar mais de um mês para consertá-los? E, por fim, como lidar com processos mais dinâmicos por natureza, como marketing de sites ou administração de servidores?

O método Kanban, com seus quadros Kanban e foco no fluxo, tornou-se uma resposta para isso, fornecendo um modo altamente estruturado, visível e flexível de gerenciar o trabalho.

À medida que a adoção do desenvolvimento de software no estilo Kanban crescia lentamente, alguns pioneiros ajudaram a disseminar o conhecimento sobre ele e moldar seu futuro definitivo.

  • Mary e Tom Poppendieck
    Marry e Tom Poppendieck foram umas das primeiras pessoas a adotar e divulgar o conhecimento sobre os métodos do Sistema Toyota de Produção aplicados ao desenvolvimento de software e ao trabalho com conhecimento. Foram palestrantes em várias conferências e publicaram livros cobrindo tópicos como Mapeamento do Fluxo de Valor, Teoria das Filas e Espaço de Trabalho Visual, que constituem a base do Kanban.

  • Microsoft
    Provavelmente, as primeiras tentativas de introduzir os princípios do Kanban nos métodos de desenvolvimento de software foram feitas na Microsoft. Para aumentar a produtividade, as equipes de desenvolvimento começaram a adicionar elementos do Scrum e do Kanban como uma extensão ao modelo “Feature Crew” existente e ao método “Bug Jail”. Isso resultou no primeiro projeto Scrumban de sucesso em 2004.

  • David Anderson, Dominica DeGrandis, Corey Ladas, e Daniel Vacanti
    Em 2005, David Anderson trabalhava na implementação do sistema de Drum-Buffer-Rope (DBR) descrito em seu livro, na equipe de Engenharia Sustentável XIT da Microsoft. Em 2007, saiu da Microsoft e foi para a Corbis, com a missão de mudar a engenharia da Corbis e melhorar sua produtividade. Lá, juntamente com Dominica DeGrandis, introduziu um sistema Kanban para processamento de solicitações de mudança. Isso liberou a equipe das restrições das iterações com limite de tempo, permitiu reduzir o trabalho em andamento e equilibrar a capacidade em relação à demanda. Na primavera de 2007, Corey Ladas se juntou à Corbis para lançar o segundo projeto Kanban, que era um processo Scrumban para desenvolvimento de produto ao invés de apenas manutenção. No verão de 2007, Daniel Vacanti se juntou à Corbis e, junto com Corey, trabalhou em um terceiro grande projeto Kanban com o objetivo de demonstrar o Kanban em escala. Isso introduziu o conceito de raias para manter os itens de trabalho relacionados unidos. Em agosto, David apresentou um Open Space na conferência Agile 2007, falando sobre a implementação bem-sucedida do Kanban na Corbis, que despertou o interesse inicial em quadros Kanban e no método Kanban.

  • Karl Scotland
    Karl ouviu falar sobre o método Kanban pela primeira vez na conferência Agile 2007. Em setembro de 2007, como Gerente de Programas de Engenharia do Yahoo!, Karl apresentou o Kanban à sua equipe, como solução para o problema da duração do Sprint na metodologia Scrum. Essa implementação foi muito bem-sucedida e Karl se tornou um dos primeiros e mais proeminentes proponentes do método Kanban.

Esses sucessos iniciais chamaram mais atenção para o Kanban.

Em 2008, um grupo Yahoo chamado kanbandev foi formado para fornecer uma base para discutir e aprender mais sobre o uso de sistemas Kanban virtuais no desenvolvimento de software e rapidamente chegou a mais de 1000 membros. Aaron Sanders, Alan Shalloway, Alisson Vale, Allan Kelly, Chris Shinkle, Corey Ladas, David Joyce, David Laribee, Derick Bailey, Eric Landes, Jeff Patton, Joe Arnold, Karl Scotland, Linda Cook, Matt Wynne, Mattias Skarin, e Rob Hathaway destacaram-se como pioneiros do método Kanban.

2009: Kanban ganha impulso

O verdadeiro ano dourado para o Kanban foi 2009.

Em janeiro de 2009, com base em sua experiência na Corbis, Corey Ladas publicou “Scrumban: Essays on Kanban Systems for Lean Software Development”, que foi uma tentativa de misturar Scrum, Lean e Kanban.

Por volta de abril de 2009, Henrik Kniberg publicou “Kanban vs. Scrum – a practical guide”. O artigo cobriu os princípios básicos do Kanban de uma forma fácil de compreender. Este foi o primeiro contato com o método Kanban para muitas pessoas.

Em maio, ocorreu a 2009 Lean Kanban conference, organizada por David Anderson, no Mandarin Oriental Hotel de Miami/EUA. Ela apresentou os mais recentes desenvolvimentos na aplicação do Pensamento Lean ao desenvolvimento de software.

Após a conferência, uma Sociedade Limitada WIP informal foi formada, com a missão de unificar e difundir o conhecimento sobre o método Kanban. A sociedade forneceu uma plataforma para agregação de artigos sobre Kanban, o que ajudou a divulgar ainda mais o método.

No verão de 2009, Jim Benson começou a publicar artigos sobre Personal Kanban, que se concentrava na aplicação dos princípios do Kanban à organização da vida pessoal, que mais tarde se tornou um método próprio.

Também em 2009, surgiram os primeiros aplicativos web para gerenciar projetos e processos de negócios com o método Kanban, abrindo caminho para uma adoção mais ampla dos princípios Kanban fora da indústria de software: Agile Zen, Kanban Tool e LeanKit Kanban.

Kanban Tool in 2009 Uma versão inicial da Kanban Tool, fonte: kanbantool.com

Após 2010: Kanban para todos

Conforme o conhecimento e o uso do Kanban aumentaram, tornou-se evidente que o Kanban funciona bem não apenas no desenvolvimento de software, mas basicamente em qualquer processo repetível. Manufatura, vendas, marketing, recrutamento – todo o tipo de processo pode se beneficiar com o Kanban. Até os militares dos EUA estavam ansiosos para adotar seus princípios. Enquanto mais e mais histórias de sucesso eram contadas, começou a ficar claro que o método Kanban precisava ter alguns princípios básicos definidos.

Em março de 2010, Henrik Kniberg e Mattias Skarin publicaram o livreto gratuito Kanban y Scrum – obteniendo lo mejor de ambos, que mais tarde foi traduzido para 14 idiomas.

Em abril de 2010, David Anderson publicou “Kanban: Cambio Evolutivo Exitoso Para su Negocio de Tecnología”. Mesmo focado em negócios de tecnologia, o livro ofereceu algumas orientações gerais sobre a implementação e uso do Kanban.

Em 2011, Jim Benson e Tonianne DeMaria Barry publicaram “Personal Kanban”, mostrando que Kanban também pode ser aplicado com sucesso a nível pessoal.

Inúmeros outros livros e artigos on-line sobre Kanban começaram a aparecer, documentando experiências individuais com Kanban e suas várias aplicações.

Finalmente, em 2016, “Essential Kanban Condensed” foi publicado, destilando o Kanban em cinco práticas:

  • Visualizar o fluxo de trabalho;
  • Limitar o trabalho em andamento;
  • Medir e gerenciar o fluxo;
  • Tornar as políticas de processo explícitas;
  • Usar modelos para reconhecer oportunidades de melhoria do processo.

Se você não está executando esses práticas, então tudo o que tem é um quadro Kanban e não um sistema Kanban.

Para saber mais sobre como aplicar o kanban ao seu trabalho, leia Fundamentos do Kanban.